Feminismo Digital: Falar de úteros sem tabus

Catarina Maia tinha apenas 25 anos quando foi diagnosticada com endometriose e adenomiose. A falta de informação sobre o que ela estava a passar e o sentimento de que se encontrava pouco representada levou-a a criar o blog “O meu útero” em 2017 como forma de partilhar a sua experiência e de ajudar outras mulheres a compreenderem os seus sintomas e a procurarem ajuda. Hoje a sua comunidade conta com mais de 46 mil seguidores no Instagram e é uma das mais relevantes plataformas digitais portuguesas feministas e de apoio a questões da saúde da mulher.


Quatro mulheres com cartazes com palavras relacionadas com o feminismo.
Nas últimas décadas, o feminismo em Portugal tem sido marcado pelo ativismo digital. Imagem de Tima Miroshnichenko, Pexels está licenciado por Pexels License

Com o início da quarta vaga do feminismo, marcado pela diversidade de pensamento e presença no mundo digital, as redes sociais representam uma interessante e valiosa ferramenta para a disseminação de conteúdo provocativo, a reflexão e a adesão em massa a movimentos ativistas mundiais. A internet permitiu também o envolvimento de cada vez mais mulheres na luta pela igualdade de género.

#MeToo, #FreeTheNipple, #TimesUp, #OrangeTheWorld e #YesAllWoman são apenas alguns dos movimentos do “ciberativismo” feminista que têm marcado a atualidade e fazem parte de uma tendência crescente de desafios ao sexismo, ao patriarcado, à misoginia e à cultura da violação. Mas o feminismo contemporâneo vai muito além da luta contra estas formas de opressão. Há uma preocupação cada vez maior com o bem-estar da mulher no seu próprio corpo e com a quebra de tabus relacionados com a saúde feminina perpetuados pela sociedade. #DoresMenstruaisNãoSãoNormais é o lema que Catarina Maia propõe para a normalização e consciencialização de doenças tão comuns (e alienadas) como a endometriose.

Como surgiu “O meu útero”?

Quando em 2017 foi diagnosticada com endometriose e adenomiose, após anos de procura da causa das suas insuportáveis dores menstruais, Catarina deparou-se com uma quantidade bastante escassa de informação relativa a estas doenças. O que encontrou era sempre relativo a mulheres que estavam a tentar engravidar, o que não era o seu caso. Foi a partir deste sentimento de falta de representatividade que nasceu o projeto “O meu útero” onde começou por partilhar a informação que ia encontrando e também a partilhar um bocadinho a sua jornada. “Foi um choque ter aqueles disgnósticos, apesar de ter tido um alívio também, e sentia que havia muita vergonha, muito tabu associado a estas doenças”. A questão da infertilidade associada à endometriose faz com que as pessoas queiram manter o anonimato e a típica expressão “dores menstruais são normais” perpetua a sensação de “ser menos mulher” sentida pela maioria das mulheres que partilham este diagnóstico.

O facto de acreditar que havia muita gente por diagnosticar também a motivou a lançar o blog. Apesar de normalmente as pessoas serem diagnosticadas com endometriose numa fase mais avançada da vida ou quando estão a tentar ter filhos, a endometriose pode se manifestar mais cedo, e quanto mais cedo se diagnosticar, mais eficaz é o tratamento, menos é o sofrimento.

Blogger Catarina Maia na rua com um blusão roxo.
Catarina Maia em 2019 colocou o jornalismo em pausa para se dedicar unicamente ao seu projeto “O meu útero”. Foto: © Catarina Maia

“Eu senti que estava numa posição completamente diferente e que não me sentia representada. Ao mesmo tempo também notava que à minha volta amigas minhas provavelmente também estavam a passar pelo mesmo que eu, ou seja, lidavam com sintomas típicos de endometriose e achavam que era normal, achavam que tinham simplesmente de lidar com isso.”

Catarina Maia

Num primeiro momento começou a criar a partir do seu ponto de vista, do que que sentia, dos seus receios, dos exames que fazia e como é que estes corriam. A partir daí foi-se construindo uma comunidade no Instagram, plataforma que utilizava para chamar à atenção das pessoas para o blog e para reunir mais leitoras com quem podia interagir mais facilmente. Atualmente Catarina foca a maior parte da sua comunidade no Instagram, até porque sente que precisa de mudar um pouco a sua abordagem no blog, onde quer conteúdo mais específico e mais informativo.

Planeamento ou espontaneidade?

O conteúdo que partilha na sua página não segue propriamente um planeamento. A espontaneidade e o que acontece no mundo diariamente decidem o rumo da conversa. “Vem tudo muito de uma dinâmica natural que eu gosto de seguir porque se eu tento planear sinto que se torna mais mecânico e menos fluido, menos natural”. Para Catarina é importante dar conteúdo informativo em forma de resposta direta às necessidades levantadas pelo seu público. As redes sociais dão-lhe esta valiosa flexibilidade.

No “O meu útero” o fio condutor é a criação de uma ponte entre quem quer partilhar algo na comunidade e essa própria comunidade. “Gosto muito de partilhar expressões que as pessoas usam para masturbação feminina, como é que as pessoas sentem as suas dores menstruais, quais é que são os sintomas estranhos que sentem em relação à endometriose…”. Esta partilha de experiências e sensações não só aumenta a sua ligação com a comunidade como também faz com que as pessoas não tenham de se expor, mas consigam passar a sua mensagem.

Dores menstruais são normais?

Os problemas abordados no Instagram do “O meu útero” são temas que muitas vezes mexem com as inseguranças das mulheres. A tendência é guardar para dentro porque ainda existe muito medo de ser percebida como inferior, como menos mulher, como incapaz, tanto pela sociedade em geral como pelo potencial parceiro. A página acaba por se apresentar como um espaço seguro, um espaço onde o julgamento de experiências não é bem vindo.

Mulher deitada em roupa interior a tocar na barriga.
Muitas mulheres experienciam dores menstruais incapacitantes, mas sofrem em silêncio com medo de serem percebidas como incapazes perante a sociedade. Imagem de cottonbro, Pexels está licenciado por Pexels License

“Sentires confiança com alguém, mesmo que não conheças essa pessoa, é o incentivo que se calhar te vai ajudar a resolver esses teus problemas e a sentires-te menos culpada. Culpada por teres dores no sexo, culpada por teres infertilidade, culpada por não saberes lidar com o teu período – muitas vezes é isto que as pessoas sentem.”

Catarina Maia

Recentemente Catarina perguntou às suas seguidoras como descreveriam as suas dores menstruais. As respostas foram impressionantes, mas não inesperadas. “Esta descrição tão violenta que as pessoas fizeram, é tão sádico, é tão agressivo”. O objetivo destas partilhas passa também por uma tentativa de consciencialização dos que, por não conhecerem esta realidade, acabam por achar que ter dores é normal, que faz parte do que é ser mulher.

Sexualidade é motivo de vergonha?

A ampla exposição que vem com uma forte presença online pode se tornar desagradável, principalmente quando se discute temas sensíveis. Mas Catarina Maia não sente vergonha do trabalho que tem vindo a desenvolver. “Coisas sobre a minha experiência, sobre as minha ideias, que eu sinto que possam fazer as outras pessoas refletir ou que tragam visibilidade sobre uma realidade… Disso eu não tenho vergonha nenhuma”.

O constrangimento é desnecessário quando a sexualidade e a saúde íntima são questões naturais e que todas as pessoas, de uma forma ou de outra, acabam por experienciar. Falar da primeira menstruação ou das dores no sexo, ou mesmo da regularidade com que se usa lubrificante, não tem de ser desconfortável, nem motivo de insegurança. Por isso mesmo a provocação por vezes abre caminhos que de outra forma continuariam fechados a sete chaves. “Gosto um bocado de provocar as pessoas – se isto mexer com as pessoas em termos de ser se calhar um bocadinho too much information, também é bom sinal”.

Penso higiénico pequeno com sangue.
No “O meu útero” fala-se de úteros, vulvas e sangue sem tabus. Imagem de cottonbro, Pexels está licenciado por Pexels License

Ainda vale a pena falar de feminismo?

Se o mundo real não é um lugar fácil para as mulheres, as redes sociais não são exceção. “De alguma forma eu sinto que a mulher tem pouco espaço até para cometer erros”. Independentemente da situação e fazendo o mesmo que um homem faz, é comum a mulher ser tratada de forma discriminatória. É percebida com menos seriedade e julgada através de um tom mais crítico. Quando uma mulher age fora da norma ou daquilo que é considerado normal no contexto digital não é vista como disruptiva, mas sim como mal comportada e inconveniente.

Quando em pleno século XXI o sexismo continua tão profundamente interiorizado na sociedade, não há dúvida que o feminismo continua a ser necessário e que tem ainda muito trabalho pela frente. “O meu feminismo é um feminismo que luta pela igualdade de direitos e pela forma de ser percecionada na sociedade em termos dos seus direitos como mulher em relação ao homem”. As desigualdades ainda estão muito presentes e cada vez é mais importante questionar os papéis impostos à  mulher pela sociedade, principalmente quando estes comprometem os seus direitos. Ainda está presente em Portugal, e não só, uma narrativa de desculpabilização da misoginia como legitima – o feminismo precisa de cumprir o propósito de lutar e acabar com estes preconceitos.


Conteúdo produzido por Carolina Lorena, Catarina Coelho, Inês Nogueira, Joana Bon de Sousa e Sofia Seruya, no âmbito da disciplina Comunicação Digital da licenciatura em Comunicação Social e Cultural.